Mariana voou para longe

Era um lugar ermo, sombrio, turvo em algumas partes. Mesmo assim, em outras bandas era agradável de habitar nele. Já as pessoas daquela cidade eram cheias de vida, alegres e limpas. Limpas no seu modo de falar, de agir, de pensar. Só que as que habitavam no início sabiam muito bem sobre o que acontecia com aquelas que preferiram morar no final dela. Ninguém fazia nada caso viessem a saber de alguma coisa, mas como sempre foram curiosas, sabiam sempre de tudo que se passava naquele lugar. E era lá que morava Mariana.

A adolescente Mariana era como todas as demais com quem tinha contato. Tinha lá sua família, seus afazeres como filha e também como estudante. Era alta, magérrima e com olhos azuis que chamavam a atenção de qualquer um com quem convivia ou que por ela passasse.

Porém, D. Luíza, mãe de Mariana, passava trabalho com a teimosia daquela garota, porque desde criança ela dizia que queria voar.

Todas as tardes desaparecia dos olhos de todos. Fechava-se naquela sala que havia sido a biblioteca de seu avô materno e se colocava a ler. Seu principal tema de pesquisa sempre tivera sido “Aviação”. Folheava todos os livros nos quais sabia que poderia encontrar alguma coisa sobre os aeroplanos dos irmãos Wright, sobre os primeiros voos realizados por eles no biplano que utilizaram, batizado com o nome de “Flyer”.

Descobriu que o Flyer ganhou altitude máxima de 37 metros e sua velocidade era de 48 km/h.

Não quero um avião deste. Quero entrar num avião rápido e que voe mais alto. Pode ser o Tupolev TU 44, este voa rápido. Nele eu consigo ir ver a Ruth — dizia a si mesma, enquanto lia aqueles livros que haviam passado pelas mãos de seu avô.

Ruth tinha sido uma grande amiga de sua infância. Estudaram no mesmo colégio de freiras da cidade. Estava um ano acima de Mariana, mas começaram sua amizade depois que Ruth colheu uma rosa no jardim das freiras e largou em direção à Mariana, e esta juntou depois de ver que Ruth levara umas palmadas de uma freira por ter feito aquilo.

As duas sonharam juntas ser aeromoças. Isso lá no pré-escolar.  Pretendiam estudar numa escola de aeronáutica. Nem bem sabiam o significado destas palavras, mas já haviam determinado o futuro delas.

Nunca mais se separaram. Porém, como o pai de Ruth era bancário, por ter sido transferido para o norte do país, lá foi ela com a família, deixando Mariana embrenhada no seu sonho de voar e chegar até ela.

Já era tarde quando os demais membros da família de Mariana chegaram. Artur, seu irmão mais velho, era piloto de uma empresa de aviões. Ela o amava, e ele já havia prometido levá-la para voar com ele. Pedro, o segundo filho de Luíza, treinava num time de futebol na cidade e por isso chegou cansado, dizendo que naquela tarde o treinador havia apertado nos exercícios e treinamento, já que em poucos dias eles estariam jogando com um time de uma outra cidade.

— Hoje foi demais! Estou quebrado — disse Pedro, deitando-se num dos sofás da sala de TV.

Depois entrou S. Francisco. Como a roupa estava muito suja de graxas, foi direto para o chuveiro.

— Mariana, vem ajudar tua mãe a servir o jantar — D. Luíza, lá da cozinha, queria fazê-la escutar, já que a biblioteca ficava longe da cozinha. Seu avô havia escolhido assim: distante de tudo e de todos para que pudesse ler sem ninguém o incomodar.

Como estava concentrada em suas leituras, não escutou sua mãe que precisava de ajuda na cozinha:

— Mariana, por favor, feche estes livros hoje e venha me ajudar.

Assustada, veio ela correndo, porque sabia que todos estavam cansados e famintos.

E o Artur, mãe? Que horas chega hoje?

— Ah, minha filha, acho que hoje teu irmão não vai dormir em casa. Parece que hoje foi lá para o nordeste do país.

— O que a senhora falou, mãe? Nordeste do país?

— Sim, por quê? — quis saber D. Luíza assustada.

— Porque eu quero ir para o nordeste também. Quero rever minha amiga Ruth que não vejo já faz uns 10 anos.

— Mas filha, você sabe o nome da cidade que ela mora? Será que ainda lembra de você?

— Ah, mãe, Ruth foi uma amiga e tanto lá no Pré. Eu gostaria de reencontrá-la e vou descobrir o lugar onde ela está morando. Pode deixar. Além disso, preciso conversar com ela sobre nossos planos.

— Está bem. Deixa seu irmão chegar para vermos como será sua viagem com ele. Agora vamos servir o jantar. Depois você me coloque a par destes planos seus com sua amiga, está bem?

Na tarde do dia seguinte, outra vez estava Mariana enclausurada na biblioteca do seu avô; no dia anterior havia deixado vários livros abertos espalhados sobre aquela mesa enorme que havia naquela sala que ninguém entrava, a não ser ela mesma. E todos eles eram sobre aviação, já que o interesse por esta área veio lá da sua infância. Descobriu num outro livro que o brasileiro Alberto Santos Dumont voou por 220 metros num tempo de 21,5 segundos, em Paris, na sua primeira tentativa de voar chamada 14-Bis, mas isso alguns anos após a invenção dos irmãos Wright.

— Como pode isso, se a professora de história falou que o primeiro homem a voar tinha sido este do nosso país? Acho que tem coisa errada aqui.

— O que está errado ali, mocinha?

Quando ela viu quem lhe havia feito a pergunta, saiu correndo e se atirou nos braços dele. Era Artur recém-chegado da viagem que fizera ao nordeste.

— Ai, mano, você? Eu quero ir com você. Não me engane mais. Mamãe me contou que você havia ido para o nordeste. Mano, minha amiga Ruth mora lá. Não sei a cidade, mas faz já quase 10 anos que eles foram para lá — e abraçou aquele irmão por quem tinha muito carinho e admiração.

— Quer me ajudar a desfazer a mochila? Depois conversamos sobre tua amiga, o lugar onde ela mora e se posso levar você comigo na próxima viagem que fizer pra lá, está bem?

D. Luíza já o havia recebido e iniciava o jantar quando chegaram juntos S. Francisco e Pedro, conversando. Alegraram-se quando viram que Artur havia chegado de viagem.

— Rapaz, para qual lugar você foi dessa vez? — Pedro demonstrou curiosidade.

— Oi pai, sempre sujinho, hein?  — Artur resmungou, abraçando seu pai chegado da oficina.

— É filho, enquanto você voa, teu pai conserta carros com problemas — suspirou Francisco, sorrindo aos filhos. — Mas, para qual lugar você foi mesmo que levou dois dias de viagem?

— Pai, a minha rota de ontem era o nordeste, mais precisamente Realeza, e levei junto uma carga da Fundação. Eram vacinas, medicamentos e insumos hospitalares. Deixei no aeroporto da capital do estado que aterrissei. Quando cheguei já havia dois carros da Secretaria da Saúde esperando. De lá fui para outro aeroporto, e como a carga que estava levando era grande e demorou o desembarque, dormi no hotel daquela cidade, mas deu tudo certo. Estou em casa com vocês novamente.

—Você falou Realeza, mano? — quis saber Mariana, prestando atenção na conversa do irmão com seu pai.

— Sim, por quê?

— Porque é lá que mora Ruth, minha amiga do Pré-escolar.

— Ah, Mariana, como você quer ir junto comigo na próxima viagem, se nem sabes que lugar de Realeza ela mora? E como saber se ela ainda está morando lá? — retrucou Artur, tentando fazer sua irmã desistir da viagem.

Nisso entrou Pedro na conversa, após sair do chuveiro.

— A mana está sonhando. Deixe-a sonhar, Artur, deixa! Esta idade que ela está é a idade dos sonhos! — Pedro ria da irmã.

 — Você pode rir. Vamos ver se não vou encontrar minha amiga do pré lá em Realeza. Vamos ver. Eu encontro ou não me chamo Mariana.

***

Naquela semana tudo parecia normal. D. Luíza continuava com seus afazeres de casa e suas idas ao supermercado para abastecer a casa. S. Francisco precisava entregar dois carros na 6ª. Feira daquela semana. Sorte dele ter mais dois rapazes na oficina que o ajudavam. Pedro tinha treinamento todos os dias e caprichava, porque seu time estava se tornando conhecido naquela cidade do sul do país. E Artur, como não tinha nenhuma viagem programada, naquele dia foi ao supermercado ajudar sua mãe.

— Também vou com vocês — Mariana tentava fechar a biblioteca do avô, deixando suas pesquisas sobre aviões para ir com eles.

— Mas você não está fazendo trabalhos de escola?

— Termino eles à noite, mano. Agora quero ir com vocês fazer compras.

— Não, você vai fazer suas tarefas que são mais importantes. Compras com a mamãe tens outro dia. E não replica com teu mano! — Sorriu Artur para Mariana.

E lá foram os dois. Mariana ficou, porém, suas pesquisas tomaram um outro rumo naquela tarde. Sentou no computador tentando encontrar o bairro Larapes, porque lembrou que sua professora no 1º ano comentou onde Ruth, sua amiga, estava morando. Lembrou também da universidade Unitor, pois conforme a professora, Ruth morava próximo a esta universidade. Anotou o endereço da universidade, desligou o computador e continuou suas pesquisas, mas sentia que logo ela estaria a bordo do avião com Artur.

***

Quando Artur e sua mãe saíam do supermercado, Artur recebeu uma ligação.

— Pois não! Sim, sou eu! — e parou um pouco, prosseguindo — Amanhã cedo? — parou outra vez e continuou — Tudo bem, estarei no aeroporto — e desligou o celular olhando para D. Luíza: — Mãe, o voo de amanhã cedo, que não seria meu, terei de fazer, porque meu colega se acidentou indo para o aeroporto. Vou levar uma carga de explosivos para o norte do país e depois há uma outra carga que preciso pegar no mesmo lugar e deixar em Realeza. Vou levar Mariana comigo.

— Mas filho, tua irmã está em aulas. Deixa para as férias dela. Nem comente com ela sobre teu destino, senão ela vai enlouquecer todos lá em casa — D. Luíza já sentia alguma coisa no ar.

— Mãe, vou e volto no mesmo dia. Se ela conseguir encontrar a amiga, tudo bem, fico com ela mais um dia lá em Realeza. Se não encontrar, ela volta comigo, mas realiza o sonho dela que é voar, não achas? — Artur tentou fazê-la compreender seu interesse em ajudar Mariana.

— Está bem. Vamos que lá em casa conversamos com ela.

Aquele final de tarde foi turbulento na casa dos Vieira.

Pedro entrou dizendo que seu time iria viajar no outro dia para São Pedro, e iriam jogar com um time da 2ª. Divisão também daquele lugar.

— Vamos sair cedo. Temos de estar no campo às 14h, mas o jogo será às 4 da tarde. Acompanhe teu filho pela TV, pai! — e via seu pai chegando também.

— Também vamos viajar de avião, não é Mariana? — Artur sorria quando olhava para a irmã.

— O que foi que você falou? Nós vamos viajar de avião? Eu também vou? Ai, mamãe, não é verdade, é? Não brinca comigo, mano. Eu não gosto.

— Não estou brincando. Tenho um voo para o norte do país e de lá tenho outro para o nordeste. E não é Realeza o lugar que mora sua amiga Ruth?

— Sim, é lá mesmo! — E deu pulos, abraçando Artur. — Eu te amo, você sabe disso, não é mano?

 — Claro que sei!  Vais viajar comigo amanhã cedo. E agora vá lá preparar sua mochila de roupas — e Artur deu um leve tapinha nas costas dela.

— Quem vai viajar amanhã? — era S. Francisco saindo do banho.

— Pai, na hora da janta eu te conto.

E jantaram. Mariana super alegre dizia que iria voar e também reencontrar a Ruth, porque queria conversar com ela sobre o que ambas pretendiam fazer. Pedro contou sobre o lugar que iriam ficar os jogadores do time dele até a hora do jogo. S. Francisco falou sobre os dois carros que estavam quase prontos, mas D. Luíza permanecia quieta. Apenas jantou, olhando para os filhos com um olhar de ternura, de amor e com a sensação de alguma coisa que ela mesma não conseguia definir.

No dia seguinte saíram quase todos, mas antes houve a despedida. Pedro abraçou o irmão e chorou:

— O que é isso, mano? Se não conseguirmos voltar ainda hoje, amanhã estaremos em casa, não é mocinha? — sorriu para a irmã que já estava com a mochila nas costas.

D. Luíza também chorou. Abraçou os três filhos, pedindo que se cuidassem.

 — Mãe, até a senhora chorando? O que é isso? Só porque vou roubar por um ou dois dias tua menininha? Deixa que trago ela de volta! — E retribuiu o abraçou de sua mãe.

— Está bem. Vou rezar por vocês três. Vão! — todos já estavam na saída de casa, inclusive S. Francisco, que ia para a oficina.

— Nega, deixa eles irem. Eles não vão estar em casa, mas eu venho almoçar com você. Vamos ficar só nos dois hoje. Já pensou? — S. Francisco falou carinhosamente, na tentativa de não a ver mais chorar.

— Está bem. Vou tentar não sofrer com a ausência dos meus filhos — e entrou para a sala daquela enorme casa que havia sido de seus pais.

E foram. Cada um pegou um rumo diferente, menos Mariana, sentada ao lado do irmão naquele carro que os levaria ao aeroporto.

— Está preparada pra viajar com teu irmão, mocinha? — sorria para sua irmã.

— Claro que estou. Já tenho o nome do bairro onde Ruth está morando lá em Realeza. É um bairro bem chique, sabias?

— Vamos ver se encontramos tua amiguinha — continuou Artur sorridente, reflexo do amor que tinha pela irmã mais nova.

Chegando ao aeroporto, apresentou sua irmã ao capitão, dizendo que ela “iria com as cargas”, e olhou para Mariana sorrindo, apesar de ela não ter compreendido, mas ele sabia que ela seria colocada na primeira classe.

— Pode deixar! Vamos colocar esta mocinha num ótimo lugar. Lá de cima ela vai ver as florestas e as águas deste país — era Capitão Alfredo Zuma, que já trabalhava no aeroporto havia mais de 25 anos.

Já dentro do avião com outros passageiros, Mariana pôde observar o movimento que havia lá fora, bem abaixo dela. Mas sorriu e disse a si mesma:

Finalmente eu vou voar como Flyer e Santos Dumont.

O motor do avião começou a funcionar e uma voz pediu que todos “apertassem o cinto de segurança”. Assim ela fez, como os demais passageiros daquela mesma classe.

Aos poucos foi saindo da pista de embarque, devagar, até chegar na pista de onde iria levantar voo. Já no alto, com Artur no comando, o avião BRT-301 voava e Mariana acompanhava as imagens lá embaixo que iam desaparecendo aos poucos.

As aeromoças transitavam de uma ponta a outra do avião, oferecendo água, sucos e lanches aos passageiros. Mariana nada quis, mas disse a si mesma: “A Ruth e eu vamos estar no lugar de vocês”. Agora, o que ela queria era sentir o mesmo que sentiram os irmãos Flyer quando estavam no ar. E assim prosseguiu.

Quando chegavam no primeiro lugar onde seria realizado o desembarque dos passageiros e das cargas perigosas levadas naquele avião, Artur, no comando do voo, sentiu que alguma coisa diferente estava acontecendo no motor do avião. Não sabia se era uma pane elétrica ou falta de combustível. Disse ao colega:

— Não acredito. Algo está acontecendo. Por que o avião está perdendo a força? — E esvaziou os tanques como medida de segurança.

Mas nada mais pôde fazer. O avião BRT-301, que transportava 120 passageiros, 4 aeromoças e um comissário de bordo colidiu com a montanha que estava a 30 km do aeroporto onde iriam pousar, — região montanhosa e de difícil acesso —, vindo explodir, com o auxílio das cargas explosivas que estavam dentro do avião. Enfim, despedaçou-se.

Ali ficaram por algumas horas. Nenhuma das pessoas que estavam a bordo do avião sobreviveu.

Mariana levantou, olhou para a menina que a chamava fazendo um sinal com as mãos e foi em direção a ela.

— Ruth, é você? — e abraçou a amiga a quem não via há muitos anos. Havia se despedido dela quando terminaram juntas o pré-escolar. Depois ambas se separaram e nunca mais haviam se encontrado.

— Vamos, Mariana. No lugar onde estou você também vai ficar. É muito lindo lá. Só flores e campos. Há muitas pessoas conhecidas por nós lá na escola que também estão neste lugar. Você vai gostar.

— Mas e o meu irmão, o Artur? Quem vai cuidar dele? — quis saber Mariana, olhando os restos daquele avião que sonhara viajar.

— Não se preocupe. Tenho amigos que irão retirar seu irmão dali e levá-lo ao “hospital” adequado. Ele vai ficar bom.

E lá foram juntas as duas grandes amigas da infância. Apenas Mariana ainda não havia entendido que sua amiga Ruth não estava mais no lugar onde ela achou que estivesse, mas o tempo se incumbiria de fazê-la compreender onde realmente estavam agora. Sentiu apenas que sua alma havia se cristalizado com a saudade dos sonhos que foram perdidos com o tempo.

E aquele lugar ermo, sombrio, turvo em algumas partes, mas agradável de habitar, era agora o lugar onde morava Mariana e sua amiga Ruth. O convívio com as pessoas daquela nova cidade — cheias de vida, alegres e limpas no modo de falar, agir e pensar — afastaria qualquer tristeza dos olhos da nova habitante. Ela seria feliz ali. E dali olharia todos lá embaixo.

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